sexta-feira, 14 de março de 2008

Sucesso do vinho de garagem

Tormentas Premium 2007 acaba de superar, em pontuação, os vinhos de autor do emblemático argentino Mauricio Lorca, em painel Brasil x Argentina confrontando os dois produtores. Hoje, um fato aparentemente banal. Amanhã, talvez, um marco na história do vinho brasileiro.
A comunicação foi feita por Marco Danielle, jovem produtor de vinhos em Encruzilhada do Sul, onde leva adiante uma experiência que os francês chamam “vinho de garagem” porque são pequeníssimas quantidades produzidas em sistemas artesanais muito especiais:


Caros amigos enófilos,

Há pouco mais de 30 anos os americanos cultuavam os vinhos franceses, e acreditavam que vinho americano servia apenas para cozinhar. Até que alguns vinhos da Califórnia comparados às cegas obtiveram notas mais altas que os grandes franceses numa apresentação confrontando alguns dos maiores vinhos da França aos primeiros produtos da titubeante recém nascida vinicultura californiana. O fato mudou os rumos do mundo vinícola, e entrou para a história como "O Julgamento de Paris" - recentemente transformado em filme por Hollywood.
Guardadas as devidas proporções, algo semelhante ocorreu no dia 14 de fevereiro passado, em São Paulo, quando o crítico de vinhos e painelista Luiz Otávio Peçanha confrontou Brasil e Argentina em dois projetos vinícolas ambiciosos, de produção relativamente pequena e centrados na qualidade: Tormentas e Mauricio Lorca.
Lorca figura entre os enólogos mais respeitados e inovadores da Argentina. Seu vinhedo está localizado em um paraíso vitivinícola; aos pés da Cordilheira dos Andes, em Mendoza, com condução controlada para produzir apenas um quilo por planta - o que atesta o requinte de um projeto radicalmente norteado para a qualidade.
Ter meu trabalho comparado ao de Lorca é uma honra. Superar suas notas, um prêmio.
Minha primeira impressão sobre o Luiz Otávio foi a de um degustador-detetive; o estilo que persegue falhas e procura "cabelo em casca de ovo", além de ver o vinho brasileiro com certa reserva (e não está, de todo, errado). Me parecia o tipo de crítico que ante a repercussão positiva de um projeto nacional fica incrédulo e trata logo de investigar o que está "errado".
O modo como Luiz Otávio aborda o produtor é frio e pouco amistoso: faz questão de comprar os vinhos que pretende "colocar à prova" para resguardar a distância, o que nos causa a sensação de dar a cabeça ao carrasco sem direito a tapinhas nas costas ou venda nos olhos. Cada vez que inclui meus vinhos em seus painéis de vinhos europeus me digo: aí vem bomba. Quando anunciou esta avaliação Tormentas x Mauricio Lorca, pensei: puxa, esse Luiz Otávio não cansa de me perseguir. Escolheu um dos mais famosos enólogos argentinos, e vai colocar meus vinhos ao lado daquelas bombas de fruta madura concentrada de um vinhedo produzindo um quilo por planta, com tempero em barrica francesa de primeiro uso. Tamanha explosão de fruta-compota ao chocolate com baunilha prejudicará a degustação do meus vinhos [mais austeros], imaginei.
O objetivo inicial deste painel Brasil x Argentina foi confrontar vinhos sem madeira de dois projetos consistentes e autorais. Mas no fim, foram avaliados três Tormentas (sem madeira) e quatro Lorca (com e sem madeira).
O Tormentas Premium 2007, vinho com menos de um ano de vida, levou a nota mais alta do painel. Este resultado quebrou uma tese que até há pouco me parecia invencível no Brasil: entre dois vinhos de qualidade, o mais velho com madeira e estrangeiro sempre terá notas mais altas que o mais novo sem madeira e brasileiro. O Tormentas Premium 2007 (sem madeira) superou a nota mais alta dada ao topo de linha de Mauricio Lorca - o Poético 2003 (12 meses em barrica).
Há pouco tempo atrás, pareceria utópico imaginar que um vinho brasileiro de menos de um ano, concebido sob a proposta ousada dos vinhos premium sem madeira, pudesse obter nota mais alta que um dos mais renomados vinhos argentinos.
Lembro que o Tormentas Premium 2007 é meu primeiro produto de vinificação cem por cento orgânica, elaborado com leveduras nativas e absolutamente sem SO2 (conservante INS 220). Comprova-se aqui a singularidade expressiva dos vinhos naturais.
O Tormentas Premium 2006, vinho de guarda, a cada nova degustação mostra-se mais distante de tudo que conhecíamos por vinho brasileiro, pela estrutura perfeita que combina maturação plena, concentração fenólica e acidez natural.
Quanto ao Minimus Anima 2007, voltou a confirmar a reação passional, de sedução e estranheza, que tanto busco em meus melhores vinhos. Tenho consciência de que trata-se de um vinho que será compreendido por poucos. Contudo, alegra-me que a sedução sempre fale mais alto, ao longo da evolução em taça.
É muito importante contar com o interesse de críticos da qualidade de Luiz Otávio, quando a proposta é divulgar experiências enológicas tão radicais quanto o Minimus Anima 2007.
Um grande abraço, e vamos em frente!

Marco Danielle
Vinhos de Autor

Eis os números da degustação:

Degustação de vinhos das Vinicolas Mauricio Lorca (Argentina) e Tormentas (Brasil)

Dia 14/02/2008 – Tratoria di Piero

(Resumo)



1- Lorca Fantasia 2006
Preço- R$ 32,00
Serviço- Servido a 10ºC
Cor amarelo palha com reflexos esverdeados, brilho médio para intenso, lagrimas abundantes e grossas. Nariz simples, de media intensidade e muito bom, com abacaxi, leve maça verde, vegetal e melado. Media persistência. Na boca mostrou-se agradável, frutado, fresco, com sensações de abacaxi, limão, leve tangerina e leve melado. Álcool um pouco quente, acidez acentuada, textura macia, pouco encorpado, médio equilíbrio, com evolução muito boa; retrogosto intenso e muito bom, com boa persistência. Nota 72/14,5

2- Minimvs Anima 2007 ( 2600 gfs produzidas )
Preço- R$ 80,00
Serviço- Decantado por uma hora e meia com agitação e servido a 16ºC
Depois de uma hora e meia de aeração no decanter com agitação, esta é minha nota: Cor rubi/magenta de media intensidade cromática, brilho médio, lagrimas bem formadas, medias, lentas e verticais. Nariz intenso e muito bom com souis bois, leve banana, tinta nanquim, ameixa, groselha, jabuticaba, violeta, pimenta vermelha e folha de tabaco. Persistente. Na boca mostrou-se agradável, frutado, com groselha, ameixa, jabuticaba meio verde, pimenta, notas de chocolate, fumaça e um leve dulçor. Álcool e acidez adequado, textura macia, taninos adequados ( agradáveis ), corpo médio, equilibrado, com evolução boa; retrogosto intenso e muito bom, com boa persistência. Nota 75/15.

3- Lorca Ópalo 2005
Preço- R$ 60,00
Serviço- Decantado por uma hora e meia hora e servido a 16ºC
Depois de uma hora e meia de aeração em decanter, esta é minha nota: Cor rubi/magenta com reflexos violáceos, media intensidade cromática, brilho intenso, lagrimas abundantes, finas e rápidas. Nariz intenso e muito bom com amora, ameixa preta, acerola, mamão bem maduro, banana da terra, pimenta, café e menta. Persistente. Na boca mostrou-se agradável, frutado, equilibrado, com sensações de amora, ameixa preta, cassis, pimenta, menta, chocolate e café com leite. Álcool e acidez adequados, textura sedosa, taninos adequados (bons/agradáveis ), encorpado, equilibrado, com evolução muito boa; retrogosto intenso e excepcional, com boa persistência. Nota 79/16

4- Lorca Poético 2004
Preço- R$ 78,00
Serviço- Decantado por meia hora e servido a 16ºC
Cor rubi/magenta, media intensidade cromática, brilho médio, lagrimas abundantes, rápidas, finas e verticais. Nariz de media intensidade e muito bom com ameixa, framboesa, groselha, anis, noz moscada, pimenta, menta, maço de cigarro, tostado e serragem. Persistente. Na boca mostrou-se agradável, frutado, com sensações de framboesa, groselha, romã, sorvete de mouse de uva, chocolate ao leite, pimenta e menta. Álcool um pouco quente, acidez adequada, textura macia, taninos adequados ( muito agradáveis ), corpo médio, equilibrado, com evolução muito boa; retrogosto muito intenso e muito bom, com boa persistência. Nota 79/16

5- Lorca Poético 2003
Preço- R$ 78,00
Serviço- Decantado por uma hora e servido a 16ºC
Cor rubi, media intensidade cromática, pequeno halo de evolução, brilho médio para intenso, lagrimas bem formadas, finas e verticais.
Nariz intenso e muito bom com ameixa, amora, figo, cravo da índia, pimenta, tostado, chocolate, café, leite e madeira úmida. Persistente.
Na boca mostrou-se muito agradável, frutado, viril, com sensações de ameixa, frutas vermelhas, banana e figo seco, pimenta, menta, café, cravo da índia, madeira, baunilha e notas terrosas. Álcool e acidez adequados, textura macia, levemente tanico ( bons/agradáveis ), encorpado, equilibrado, com evolução muito boa; retrogosto intenso e excepcional, com boa persistência. Nota 81/16

6- Tormentas Premium 2006 ( 1100 gfs produzidas )
Preço- R$ 160,00
Serviço- Decantado por uma hora e servido a 16ºC
Cor rubi/magenta, media intensidade cromática, brilho médio para intenso, lagrimas abundantes, finas e rápidas.
Nariz de media intensidade e muito bom com acetato de etila, álcool, cereja, floral, pimenta, chocolate. Persistente.
Na boca mostrou-se muito agradável, frutado, complexo, com frutas vermelhas e pretas, chocolate e pimenta. Álcool um pouco quente, acidez adequada, textura macia, taninos adequados ( muito agradáveis ), encorpado, equilibrado, com evolução muito boa; retrogosto intenso e excepcional, com boa persistência. Nota 80/16.

7- Tormentas Premium 2007 ( 700 gfs produzidas )
Preço- R$ 160,00
Serviço- Decantado por uma hora e servido a 18ºC
Cor rubi/sangue, brilho médio, lagrimas bem formadas, lentas e verticais.
Nariz intenso e muito bom com amora, cereja, hortênsia, violeta, cominho, pimenta e café. Persistente.
Na boca mostrou-se muito agradável, frutado, elegante e viril, com sensações de frutas vermelhas maduras, morango em calda, leve pimenta e café. Álcool e acidez adequados, textura macia, tanico ( finos/muito agradáveis ), corpo médio, equilibrado, com evolução muito boa; retrogosto muito intenso e muito bom, com boa persistência.Este vinho parece ter estrutura para uma boa evolução em garrafa, devendo melhor com alguns anos. Nota 82/16,5.

Obs: Na minha opinião os vinhos polêmicos nos levam a buscar mais conhecimento que os vinhos consensuais.


Saudações
Luiz Otávio

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