terça-feira, 7 de outubro de 2014

Vinho com ou sem dor de cabeça


Olyr Correa, enófilo do Caty, onde fica sentado, olhando os cavalos e as ovelhinhas e pensando se planta ou não planta videiras,  e do Rio de Janeiro, onde olha coisas mais cativantes, manda um artigo de Vitor Gomes Pinto da ABS Brasilia. E acrescenta “cuidado com os taantes e os malbeques”.
Este é o texto de Gomes Pinto:
“Não se trata, aqui, de falar em ressaca. Afinal, você deve respeitar os limites de seu organismo e, por mais que goste de vinho ou de qualquer outra bebida, ingerir apenas a quantidade que seu organismo aceitar sem ultrapassar a barreira da normalidade. Para algumas pessoas, no entanto, até mesmo uma só taça de vinho tinto tem o poder de desencadear, em minutos ou em poucas horas, uma forte dor de cabeça que pode (mas em geral não o faz) provocar náuseas. O fenômeno é tão freqüente que ganhou até nome na literatura médica: é a Síndrome da Dor de Cabeça pelo Vinho Tinto, RWH na sigla em inglês (Read Wine Headache syndrome). A discussão sobre suas causas e significados ganhou ênfase doze anos atrás quando o New York Times repercutiu, quase sem tirar nem por, uma análise publicada na revista Harvard Health Letter. Desde então médicos, químicos, consumidores, enólogos e vinicultores procuram compreender o fenômeno. Em princípio, à exceção dos que sofrem de asma, urticária ou são alérgicas a componentes do vinho respondendo à sua ingestão com sintomas de enxaqueca, não há uma razão clara para a manifestação da RWH que, não obstante, resiste aqui e alhures.
Uma importante corrente de estudiosos afirma que a culpa é do SO2 que atende por vários nomes: anidrido sulfuroso, dióxido de enxofre, sulfito, INS 220 (classificação pelo International Numbering System). É o conservante que permite maior longevidade aos alimentos atuando como antisséptico, antibacteriano e agente clareador relevante inclusive no caso de frutas de balcão e de vinhos brancos que de outra maneira ficariam marrons. Evita a formação de ácido acético que tornaria o vinho avinagrado, mas em doses exageradas pode acidificar o solo e depois, no produto final, gerar um característico cheiro de ovo podre. É conhecida a história de um degustador sueco que provou vários vinhos com odor a fósforo e questionou se a vinícola tinha problemas higiênicos para adicionar tantos sulfitos. Uma vez que o SO2 está presente na casca das uvas, é impossível produzir vinhos absolutamente sem contê-los. Aliado da videira, o enxofre se opõe a parasitos muito vorazes como os fungos míldio e oídio. No processo de vinificação é adicionado ao mosto logo depois do esmagamento das uvas para combater bactérias e leveduras indesejáveis. O vinho normalmente é um meio ácido. Um baixo pH, por volta de 3 (um meio neutro tem pH igual a 7), está associado a uma vida mais longa do vinho e quanto menor o pH menos SO2 lhe será necessário.
Os efeitos potencialmente prejudiciais à saúde dos sulfitos fizeram com que a FDA (Food and Drug Administration) dos Estados Unidos impusesse a exigência de que os produtos contendo 10 mg ou mais de SO2 (dez partes por milhão) devem obrigatoriamente fazer constar no rótulo: “contém sulfito” (ou SO2, ou INS 220). Contudo, não há qualquer obrigatoriedade de revelar qual o teor real em cada produto. No Brasil, que segue o padrão americano, a Anvisa aceita que o vinho possa conter até 350mg. Na União Européia o limite máximo é de 160 mg/litro e na Austrália (para vinhos tintos secos) de 250 mg/l. Quanto mais alta a dosagem de SO2 maiores são as chances de que a dor de cabeça se manifeste (assim como em vinhos baratos que costumam adicionar mais açúcar para elevar o teor de álcool que então se torna mais impuro e mais danoso). Algumas aferições de laboratório feitas em estudos brasileiros têm indicado que o teor de SO2 em vinhos tintos nacionais situa-se num patamar de até 200 mg/l, mas isto depende da acidez do líquido e, em última análise, da consciência do produtor. A Ingestão Máxima Aceitável (IDA) de sulfitos, segundo a FAO e a OMS, é de 0,7 mg por kg de peso, ou seja, 49 mg para uma pessoa que pese 70 kg. Uma meia garrafa de tinto que contenha apenas 15 mg por litro (15 partes por milhão), por si só proporciona 56 mg de SO2. É importante, ainda, considerar outras fontes de ingestão diária, pois os sulfitos estão em proporções por vezes mais altas, p.ex. em frutas cristalizadas, sucos industrializados, geléias, mostarda, biscoitos, licores, salsichas.
Cada vez mais surgem vinhos naturais (sem sulfitos) e os que, respeitando a natureza como os ditos biológicos, orgânicos ou biodinâmicos, por vezes adicionam quantidades mais baixas do dióxido de enxofre. O Instituto Francês do Vinho (IFV) permite a presença de anidrido sulfuroso até mesmo nos naturais. A ausência de SO2 torna o vinho instável provocando perdas de até 50% da produção, de onde resultam preços finais elevados e de reduzida competitividade no mercado. Juan Carrau, que ainda produz entre outros o Velho do Museu, um ícone brasileiro, quase na divisa com o Uruguai, diz que a condução dos vinhedos orgânicos (e biodinâmicos) é um caminho para atingir vinhos de melhor qualidade em equilíbrio com o meio ambiente e não necessariamente para reduzir o teor de SO2. Ainda assim, felizmente é crescente a oferta de vinhos com pouco ou sem sulfitos no mercado e, uma vez que o ar é o principal fator para abreviar a sua longevidade, surgiram melhores lacres, ceras colocadas acima da rolha e tampas (screw caps) que proporcionam uma mais perfeita vedação. Produtores europeus e norte-americanos têm ofertado vinhos com zero ou baixos teores de sulfitos, como a Frey Vineyards no norte da Califórnia (em Redwood Valley), Roboredo Madeira no Douro com o Carm que tem “SO2 free” no rótulo (importado pela World Wine), ou o Côtes du Rhone Belleruche do mestre das práticas biodinâmicas Michel Chapoutier. E, no Chile, vale lembrar as criações da Nativa Viñedos Orgánicos (estes dois últimos na Mistral).
Um dos mistérios nesta equação é que os brancos, nas mesmas condições (de ingestão moderada), não causam dor de cabeça embora, devido à sua menor resistência à oxidação, requeiram maiores dosagens de SO2. Tal fato tem levado os pesquisadores a apontar outros possíveis culpados para a RWH, como as histaminas, a tiramina e os taninos. Vinhos tintos contém de 20% a 200% mais histamina (é produzida pelo organismo e ingerida por meio dos alimentos) do que os brancos e pessoas alérgicas podem ser afetadas pela dilatação e contração dos vasos sanguíneos de onde resulta a dor de cabeça. Já a tiramina, outra amina, que tem sido associada à ocorrência de enxaquecas, parece mais prejudicial em vinhos muito jovens ou naqueles não adequadamente filtrados ou mal estocados. Os taninos, próprios dos tintos, atuam como potentes antioxidantes e servem para conservar, dar cor, substância e aromas ao vinho, mas são liberadores de serotonina, um neurotransmissor (conduz impulsos nervosos e atua no controle da ansiedade, medo, depressão, sono, percepção à dor) que em altos níveis pode provocar dores de cabeça em pessoas sensíveis. É preciso lembrar, ainda, que o álcool ─ com teores que vão desde 7% em um riesling do Mosel ou num vinho verde até 16% em certos gewurztraminer da Alsácia ou zinfandels ─ costuma ser responsável por desidratação e pelas cefaléias que ocorrem logo após a sua ingestão.
É provável que as dores de cabeça sejam, para quem delas sofre com alguma freqüência, o resultado do somatório de vários fatores, cabendo a cada um esforçar-se para identificar o que mais o afeta. Algumas possíveis soluções para casos reais de RWH: a) prefira vinhos brancos; b) prefira vinhos com teor mais baixo de álcool; c) opte por varietais das uvas gamay e pinot noir que são menos tânicas, mas observe se o consumo de chocolates e chá ou outros alimentos que também contém taninos lhe causam os mesmos efeitos; d) experimente tomar, antes do vinho, um comprimido de aspirina ou, se não tiver problemas de pressão alta nem for idoso, uma cápsula de ibuprofen (Advil), consultando seu médico se tiver dúvidas sobre a medicação; e) procure ter acesso a vinhos sem SO2 ou orgânicos/biodinâmicos/biológicos que informem adicioná-lo em baixas quantidades; f) lembre-se de ingerir água entre uma taça e outra, mantendo-se hidratado; g) adapte-se, mas não deixe de usufruir tudo o que um bom vinho pode fazer pela sua saúde e pela sua vida. 

Vitor Gomes Pinto
Escritor. Associado da ABS-Brasília”

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