quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Érico Veríssimo na vinícola Petronius

                   A casa de Emílio Kunz, em Gramado, onde ficava a Vinícola Petronius
                  Orestes de Andrade Jr./D/JN

                                 Emílio Kunz Neto
                                Mell Helade/D/JN

Herdeiros da família Kunz, retratada na obra-prima do escritor gaúcho Érico Veríssimo, que voltou às manchetes com a realização do filme O tempo e o vento, de Jayme Monbjardi, relembram para o jornalista Orestes de Andrade Jr. a relação com o escritor, que gostava de um bom vinho. Os Kunz, uma das duas famílias de imigrantes alemães mencionadas em O Continente, primeiro tomo de O Tempo e o Vento, têm uma relação de proximidade com o autor da obra mais conhecida da literatura gaúcha, Erico Verissimo. O escritor ficava hospedado em Gramado na casa de Emílio Kunz, dono da Vinícola Petronius. Segundo lembra agora o seu neto, de mesmo nome, e que está retomando o projeto na Petronius Cervejaria & Destilaria, desta vez em Caxias do Sul, a casa antiga da família ficava à disposição de Erico Verissimo em Gramado, após a mudança dos Kunz para um novo prédio da vinícola. “Por esta proximidade, Érico Verissimo chegou a pedir permissão para colocar o nome da família na sua obra-prima”, recorda Emilio Kunz Neto. Ele conta que “era uma casa de madeira, antiga, bem construída, como os alemães costumam fazer, situada no centro de Gramado”. Por produzir muitos sons e ruídos, se dizia que a casa era mal-assombrada. “Talvez o vento batendo na casa provocasse alguns sons que podem ter ficado na memória do Erico Verissimo”, observa Kunz.
O nome da família ficou eternizado em O Tempo e o Vento com a narração da chegada em Santa Fé, em 1833, de duas famílias de imigrantes – uma delas chefiada por Erwin Kunz, “o alemão alto, magro, de rosto vermelho e sardento”. A sua filha era Helga Kunz, “cuja beleza deixou alguns dos homens que a viram um tanto perturbados. Teria uns vinte anos, no máximo, olhos dum azul vivo e limpo, e cabelos tão louros que pareciam polvilhados de ouro”. Segundo a história narrada por Erico Verissimo, o Capitão Rodrigo chegou a ter um caso com ela, que, mais tarde, o desprezou.
A jornalista e escritora Adriana Antunes fala que Helga Kunz foi uma mulher muito interessante, apesar de aparecer em poucos capítulos de O Tempo e o Vento. “É uma personagem que faz toda a diferença por trazer a possibilidade do novo, do moderno, da mulher poder fazer as suas próprias escolhas, antecipando por décadas a luta feminista”, afirma. Para ela, a relação com o Capitão Rodrigo, que ocorreu em 1834, um ano após a chegada de Helga Kunz a Santa Fé, representa a junção de dois períodos históricos. Um ligado às tradições gaúchas, representada pelo Capitão Rodrigo, e a outra possibilidade de civilização, conhecimento e instrução presente na Helga Kunz. A personagem abrevia as lutas da mulher, a liberdade, e a possibilidade de escolha. Ao rejeitar o Capitão Rodrigo, ela mostra independência. “Helga Kunz é um símbolo da autonomia e poder que o Erico Verissimo deu às personagens femininas de O tempo e o Vento”, conclui.
A retomada desta história acontece justamente no mês em que o projeto da Petronius Cervejaria & Destilaria, da família Kunz, é retomado em Caxias do Sul, agora sob a batuta da nova geração, Emílio Kunz Neto e seus filhos, Augusto e Júlio César. Ocorre também na semana de lançamento da nova adaptação do clássico de Érico Veríssimo para o cinema, com roteiro assinado por Leticia Wierzchowski e Tabajara Ruas, com direção de Jayme Monjardim. A estreia não poderia ser mais emblemática – no dia 20 de setembro, data que marca o início da Revolução Farroupilha. “Estamos retomando a nossa história secular no setor de bebidas e o registro no livro O Tempo e o Vento demonstra a nossa ligação com o formação cultural do Rio Grande”, destaca Emilio Kunz Neto.
O filme abrange um período de 150 anos, desde as Missões até o final do século 19, contando a história de duas famílias rivais, a Terra Cambará e a Amaral, especialmente o romance vivido entre Bibiana (interpretada por Marjorie Estiano na juventude e por Fernanda Montenegro na maturidade) e o Capitão Rodrigo (vivido por Thiago Lacerda). O elenco ainda conta com Cléo Pires, Leonardo Machado, Fernanda Carvalho Leite, Janaína Kremer, Rafael Cardoso e Mayana Moura.

Veja trechos do livro O tempo e o vento em que aparece a Família Kunz:

A chegada dos Kunz a Santa Fé
Em princípios de 1833 Santa Fé foi sacudida por uma grande novidade: a chegada de duas carroças conduzindo duas famílias de imigrantes alemães, as primeiras pessoas dessa raça a pisarem o solo daquele povoado. Os recém-chegados acamparam no centro da praça, e em breve toda a gente saía de suas casas e vinha bombear. Muitos dos santafezenses nunca tinham visto em toda a sua vida uma pessoa loura, e aquela coleção de caras brancas, cabeleiras ruivas e douradas, olhos azuis, esverdeados e cinzentos - era uma novidade tão grande, que a manhã de fevereiro mais parecia um dia santo com quermesse, cantigas e danças na frente da igreja.

Quem eram os Kunz

Antes do anoitecer já havia informações positivas sobre as duas famílias. Chamava-se Erwin Kunz o alemão alto, magro, de rosto vermelho e sardento. Ia abrir uma selaria no povoado. Tinha mulher e uma filha cuja beleza deixou alguns dos homens que a viram um tanto perturbados. Teria uns vinte anos, no máximo, olhos dum azul vivo e limpo, e cabelos tão louros que pareciam polvilhados de ouro. "Tem cara de imagem" - disse um. "É duma boniteza engraçada" - comentou outro. E aqueles homens habituados às suas mulheres de cabelos e olhos castanhos ou negros - criaturas de feições bem marcadas - ficavam um tanto perplexos diante de
Helga Kunz, tão branca e delicada, que falava outra língua e se vestia duma maneira diferente das mulheres do lugar. Uns a miravam com desconfiada insistência, como que procurando decifrarlhe o semblante. Outros a avaliavam como fêmea, olhavam-lhe os pés nus metidos em chinelos de couro, os seios pontudos. Houve um que disse: "Não troco as nossas chinas por essa alemoa".

Diferenças
A casa de Hans Schultz e de Erwin Kunz ofereciam um contraste nítido quando comparadas com todas as outras do povoado. Eram graciosos chalés de madeira, muito limpos, que tinham até cortinas e vasos de flores nas janelas. Pouca gente do povoado havia entrado nelas, mas os poucos que as visitavam diziam que lá dentro até o cheiro das coisas era diferente. O que chamava também muito a atenção dos santa-fezenses era os jardins bem-cuidados que havia na frente de ambos os chalés, com seus canteiros caprichosos e as suas flores. 'Estrangeiro é bicho esquisito' - comentavam os naturais do lugar.

Helga Kunz e o Capitão Rodrigo
Depois daquela inesperada noite com Helga, Rodrigo ficara alvorotado, desejando a segunda, a terceira e muitas outras noites. E a simples perspectiva de ter uma mulher cor de leite num dia e uma mulher cor de canela noutro, enchia-o duma alegria que lhe tornava cada vez mais difícil passar as horas na venda. Mas aconteceu que depois da noite de Ano-Bom não pudera mais nem aproximar-se de Helga. A rapariga andava arisca e quando passava pela venda nem sequer olhava para ele. O capitão inventava estratagemas para falar com ela. Foi um dia à selaria de Kunz para encomendar um serigote, e ficou conversando longamente com o alemão, na esperança de ver-lhe a filha. Mas não viu; ouviu-lhe apenas a voz, no fundo do chalé. Voltou para casa decepcionado; e sua decepção se transformou numa espécie de ressentimento, e o ressentimento em fúria quando um dia se espalhou a notícia de que chegara à vila o noivo de Helga, um alemão grande, de barbas louras e olhos claros. Morava em São Leopoldo, onde tinha uma chácara, e vinha buscá-la para a boda. Helga foi-se com ele, pois o casamento ia ser feito naquela colônia por um pastor protestante. E quando a "filha do Serigote" montou a cavalo e partiu em companhia do noivo para empreender uma viagem que levaria muitos dias e muitas noites, os moradores de Santa Fé trocaram perguntas e comentários atônitos ou maliciosos: "Mas ela vai sozinha com o noivo?" "Vão casar só em São Leopoldo." "Cruzes, que gente!" "Também, depois do que aconteceu com o capitão Rodrigo..." Mas Chico Pinto julgou resumir numa frase a explicação de tudo aquilo: "Estrangeiro é bicho sem-vergonha".

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